Ninguém morre uma só vez. A morte é uma sucessão de falecimentos.
Dias desses eu estava contando as vezes que morri, com apenas 25 anos de existência.
Comecei no colégio aos 3 anos de idade, quando na verdade era pra ter começado com 2, mas a diretora disse a minha mãe que não ia ser bom pra mim ter 'amiguinhos mais velhos'.
Eu tinha um professor geografia que me reprovou na sexta série. Posso dizer que ambos não tivemos culpa. Só que eu ia prestar concurso para a Escola Militar, e com essa reprovação por 0,5 pontinhos me tirou o mérito ( e as férias). Foi a minha primeira morte.
Lá em casa não podia ter só essa besteira de vocação, e eu quis ser médica. Meu pai nao ia aceitar me sustentar por mais que fosse o meu sonho (e vocação) durante anos e anos que eu não passasse no vestibular de uma federal. Tão pouco pagar cursinho sabendo que eu entraria em qualquer outra Cadeira que eu tentasse. Estudar eu estudava, treze horas por dia, mas não era o suficiente pro que eu queria. Tive que abandonar a Medicina. Sobrou pra Engenharia. Foi quando morri pela segunda vez.
Um dia eu saí direto da faculdade para a sede da Petrobrás. Era o primeiro dia de inscrição para engenheiro treinee. O rapaz que estava lá olhou para a minha cara e disse que eu não tinha cara de quem passaria, talvez por causa da idade. Eu completara 18 anos. Me mandou voltar pra casa e pensar se eu tinha mesmo condições de concorrer, pra eu não gastar dinheiro. Eu não sabia que atendentes podiam tentar acabar com os sonhos da gente. Era só uma forma de teste, de aprendizado, mas tinha muita vontade envolvida. Sai dali morta mais uma vez.
E assim, morrendo uma vez aqui, outra vez ali, eu venho vivendo.
Um a um os amigos foram me matando. Depois os colegas, depois muita gente. Depois, até a minha maior paixão desde os tempos de criança me condenou a morte. Vasco na Segunda Divisão. Parecia a maior delas.
Ninguém sabe, não deu nos jornais nem na telinha. Na saída de um jogo que eu fui, mataram a tiros três torcedores na entrada do metrô estação Maracanã. A Imprensa comeu em boca.
Pensei em me afastar do estádio. E de fato, me afastei, mas por motivos bem maiores. Eu já não tinha tempo nem grana. O Vasco andou me deixando com dívidas (com meus pais, claro!).
Semana passada ia eu dentro de um ônibus que trafegava pela ponte Rio-Niterói, e lá nos bancos da frente uns torcedores discutiam a queda de rendimento, a eliminação do campeonato. Todos eram unânimes que um tal craque era um tremendo vacilão, cavador de falta e recebedor de cartões. Metiam a lenha nas qualidades futebolísticas dele sem dó nem piedade, e eu lá detrás, fiquei pensando que o ídolo da bola baixara seus próprios vencimentos, deixando de disputar a temporada nobre tanto aqui quanto na Europa para jogar a Serie B e que eu faço Rio-Niterói todo dia pra levantar uma graninha no fim do mês levaria uns 10 anos ou mais pra comprar o que ele compra com 1 contracheque.
Fiquei pensando: precisava rever meus ídolos.
Jogo do Vasco. Sogra, sogro, namorado. Guarani. Milhões de gols feitos perdidos. Impaciência. Cansei. Aí eu desliguei a tevê e fui dar um jeito nas minhas coisas porque estava bagunçado à bessa.
Interrompendo o futebol para falar sobre o à bessa.
Bessa era um governador de estado nordestino, adversário declarado do Barão do Rio Branco. O Bessa sabia discursar.
Um dia um cidadão comum reivindicou um seu direito ao Governador aqui do Rio de Janeiro, mas com tanta eficácia que o nosso governador disse: você reivindicou à Bessa.
Aí o jargão pegou, mas depois ganhou a conotação de designar grande quantidade.
Mas vamos aos fatos.
Armário devidamente arrumado, roupas lavadas, perguntei o resultado à família e soube que a partida terminara zero a zero.
Morri mais uma vez.
Na minha casa: minha mãe e irmão são Flamengo. Meu pai, Bahia. Das quatro tias que tenho, três são Flamengo. Avó Corintiana, avô Botafogo. Ou seja, de onde vem o fato de eu ser a ÚNICA vascaína da família?
Peguei minhas camisas, a caneca de coleção idem, o chaveiro com a cruz, caderno, bandeira e tudo o mais, juntei tudo e vou dar um tempo nessa história de ficar histéria e triste por causa desse Clube que me dá orgulho e tantas mortes a cada partida.
Nessa data, vinte um de junho de dois mil e nove, deixo de ser um pouquinho Vasco, para não torcer nunca por nenhum outro clube.
Mas morri Vasco.